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domingo, 4 de setembro de 2016

“Onze ilhas”: o STF como um tribunal (des)colegiado


 
Ao contrário do que acontece na maioria dos países europeus, nos quais a deliberação das Cortes Constitucionais – com as devidas particularidades – é feita a portas fechadas e com o grande objetivo de alcançar um consenso, a Corte Constitucional brasileira decide seus casos não apenas em sessões abertas ao público, como também televisionadas. Além disso, na medida em que os ministros decidem como 11 ilhas, nas palavras de Conrado Mendes – pois redigem seus votos prévia e individualmente e dificilmente são persuadidos pelos argumentos trazidos pelos seus colegas –, adquirem identidades judiciais públicas, isto é, personificação midiática.

Partindo desse panorama, José Rodrigo Rodriguez, em “Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro)” – obra que lhe rendeu o prêmio Jabuti de 2014 – chama atenção para a impossibilidade de se identificar uma voz institucional, racional e unificada do Supremo Tribunal Federal, bem como para a naturalização do emprego de argumentos de autoridade para fundamentar as decisões judiciais. Isto é, o autor identifica a alusão à produção doutrinária não para fins de justificar a reconstrução sistemática do sentido das normas jurídicas, mas para unilateralmente se defender uma posição com base na opinião veiculada por este ou aquele autor. Dessa forma, pontua que “os argumentos trazidos servem mais para reforçar a opinião do autor da decisão do que para fazer uma discussão ampla e profunda sobre as características do direito brasileiro em relação ao caso concreto em exame”.
 

Aliás, Rodriguez destaca também que é no mínimo peculiar a possibilidade de que cada ministro publique um voto individual integralmente, ainda quando de acordo com a justificação e o resultado do voto do relator ou de outros membros do colegiado. Para ele, isso pode ser explicado, em parte, justamente pelo fato de os “debates” entre os ministros serem públicos e televisionados, direcionados, portanto, a uma plateia. Assinala, ainda, que em um modelo tal é possível a produção de uma decisão unânime com 11 fundamentações diferentes, não dialogadas entre si. Dessa forma, o desenvolvimento do direito se dá tão somente através da referência ao resultado dos casos anteriores, de modo ad hoc.  A forma como o entendimento da corte é redigido também acentua esse déficit. Isso porque o acórdão resultante do processo de deliberação, regra geral longo, é desorganizado e de difícil compreensão, visto que consistente na mera agregação dos votos individuais. Equivale, assim, a uma colcha de retalhos.

Bem vistas as coisas, o autor define o direito brasileiro como uma justiça opinativa, representada por meio de ementas e enunciados cujo conteúdo, demasiado resumido, nem sempre corresponde a uma reconstrução argumentativa fiel à opinião da Corte, a uma porque esta muitas vezes sequer é identificável, a duas porque o ministro responsável pela elaboração do acórdão não raramente reproduz os argumentos de seu voto individual, em detrimento dos argumentos consensualmente alcançados. Tendo isso em vista, Rodriguez adverte que “ao que tudo indica, o Brasil parece possuir um direito que se legitima simbolicamente em função de uma argumentação não sistemática, fundada na autoridade dos juízes e dos tribunais; mais preocupada com o resultado do julgamento do que com a reconstrução argumentativa de seus fundamentos e do fundamento dos casos anteriores”.

Por outro lado, o autor refuta que o momento atual se caracterize por uma desmedida “judicialização da política” ou um “ativismo judicial”, os quais apenas fazem sentido quando tomada, como ponto de partida, uma concepção clássica de separação de poderes, inaplicável à dinâmica institucional atual. O crescente destaque da ingerência do Poder Judiciário, para ele, nada mais é do que contraparte necessária de um processo caracterizado pela crise da representação política, do princípio da legalidade e do padrão de racionalidade adequado para descrever a aplicação das normas jurídicas. Em especial no Brasil, o momento é de redesenho das instituições, em todos os níveis. Para ele, “já dispomos de suficiente experiência democrática para saber que o direito como fenômeno social não pode ser reduzido a uma simples ‘voz do poder’, mas que é uma etapa decisiva da disputa política entendida em sentido amplo”.

Nessa medida, assim como o princípio da separação dos poderes, a noção de segurança jurídica também passou por reformulação. Apesar de ter sido pensada como “a existência de respostas únicas e unívocas para os problemas jurídicos apresentados diante do Poder Judiciário”, a possibilidade de se obter mais de uma resposta para questões jurídicas é um fato normal, não apenas diante da inerente equivocidade e abertura da linguagem – pois um texto fechado pode implicar maior equivocidade do que um texto aberto –, mas sobretudo pela flexibilidade com que o texto constitucional deve ser interpretado dentro de uma sociedade complexa.

Com efeito, hoje, segurança jurídica não corresponde à obtenção de uma resposta única para cada problema jurídico, consistindo numa resposta suficientemente justificada de acordo com os critérios e o limite temporal vigentes em cada ordenamento jurídico. Esta resposta, conforme destaca Rodriguez, jamais será “a” resposta final, mas “uma” resposta que, apesar de colocar fim ao caso concreto, é provisória e colabora para a evolução do direito através da promoção do debate jurídico no seio social.

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